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21 fevereiro, 2010

sobre Up in the air


Bom, mais uma vez, que péssima tradução de título! Não vi o filme ainda, mas só de saber dessa mudança tão importante no título já me dá raiva, imagina ao ler o texto abaixo...Bom, mesmo antes de assistir ao filme, posso opinar baseado no artigo enviado pela Val.

Nem cisnes, nem tubarões. Qualquer rótulo me incomoda, e mais ainda os gerados por um sistema decadente e excludente como o capitalismo. Não acho que as sacolas devam ser esvaziadas, ao contrário, quanto mais "pesadas" melhor, mostra quanto vivemos, quantos amigos conquistamos, quantos estão distantes fisicamente mas nunca estiveram tão presentes, quantos amores nos fizeram sorrir, e mesmo chorar, e nos ensinaram a arte da tolerância, quantas fantasias foram desfeitas e quantos sonhos se multiplicaram, mudaram, transmutaram...Nietzsche diz que a arte torna a vida possível, e minha sacola é repleta de arte. Ele diz também que tudo tende ao caos, que inevitavelmente cairemos no abismo, mas isso não nos credencia a ir em direção a ele à esmo, temos que criar nosso próprio caminho, mesmo que este caminhe à margem daquele que inevitavelmente nos levará à morte. Numa vida naturalmente dionisíaca, tentar ser apolínio. Na minha sacola, ambos caminham juntos, ora um mais forte, ora outro, mas faço questão de levá-los ambos.


O homem que vivia nas nuvens

RYAN BINGHAM tem uma filosofia. Imaginem uma sacola. Vazia. Agora comecem a enchê-la. Com tudo aquilo que faz parte da vida. Primeiro, os objetos. Dos mais pequenos aos maiores, dos mais leves aos mais pesados. Depois, pessoas. Amigos, família.
Namoradas, mulheres. E filhos, não se esqueçam dos filhos. Com a sacola às costas, tentem agora caminhar. É nesse momento que o auditório da palestra ri com a metáfora do palestrante. Ryan Bingham ri com o auditório e termina com a definição sacramental: "Nós não somos cisnes. Somos tubarões".
Que o mesmo é dizer: os seres humanos não foram feitos para parar. Não foram feitos para manterem ligações essenciais com coisas, pessoas, lugares. Os seres humanos foram feitos para avançar. Sempre e sempre e sempre.
E, no caso de Ryan, para voar: de cidade em cidade, milha após milha, com o propósito de demitir empregados que as próprias empresas já não têm coragem para mandar embora, olhos nos olhos. Ryan cumpre esse trabalho sujo e até dá um toque humano ao momento, como os matadores de arena na presença da sua presa.
Ryan Bingham é o personagem de George Clooney em "Up in the Air", terceiro filme de Jason Reitman e inacreditavelmente traduzido no Brasil por "Amor sem Escalas". Digo inacreditavelmente porque o título do filme é a chave para entender metade dele.
"Up in the Air", "lá em cima", "nas nuvens", não é apenas o espaço existencial onde Ryan Bingham gosta de estar: sempre em movimento, com o objetivo infantil de acumular dez milhões de milhas e ter direito a cartão e tratamento aéreo preferencial. "Nas nuvens" é a condição existencial de Ryan: acima do mundo, acima das preocupações do mundo, acima dos terráqueos que o habitam. E com a sacola vazia.
Pelo menos, assim será até o dia em que a sacola começa a ficar mais pesada. No bar de um hotel, Ryan encontra o seu clone. "Pense em mim como alguém igual a você, mas com uma vagina", diz-lhe Alex, um tubarão como ele. É o arranjo perfeito: uma bela mulher sem ilusões românticas de belas mulheres? Sem exigir presença ou compromisso?
É o arranjo perfeito, disse eu, ou diria ainda, se o amor, esse demônio ladino, não se introduzisse pelo meio, disposto a transformar o tubarão Ryan no cisne Bingham. Disposto a obrigar o homem das nuvens a descer à terra. E ele desce. Mas, pergunta fatal, pode alguém que vive de ilusões reconhecer ainda uma?
"Up in the Air" foi descrito nos textos promocionais como um filme sobre a crise econômica atual e o desemprego inevitável que, só nos Estados Unidos, ultrapassou a barreira impensável dos 10%. É uma forma de ver as coisas.
Outra é dizer que, na Hollywood infantil dos últimos anos, o filme de Jason Reitman é um produto estranho e assaz amargo.
Estranho, porque capaz de lidar com o tema mais complexo, e mais onipresente, e talvez por isso mais ignorado da nossa condição contemporânea: a solidão que a habita; ou, se preferirem, a solidão que habita as ilusões dos homens modernos: "homens sem qualidades" que mascaram o vazio abissal dos seus dias com a vertigem da impermanência.
Mas o filme é amargo ao mostrar, sem sentimentalismos ou redenções de qualquer espécie, como é doloroso o fim dessas ilusões. Verdade que nada disso seria possível sem a composição magistral de George Clooney. Já assisti a demasiado cinema e a demasiado teatro para me deixar impressionar pelos macaquinhos do "Método". A composição de Clooney, capaz de oscilar entre o ritmo da "screwball comedy" e o silêncio sutil do fracasso, é tão perfeita que a confundimos facilmente com a "leveza" ilusória das nuvens onde ele vive.
E, no final do filme, é a elas que regressamos. Um longo plano sobre um tapete branco e a voz de Ryan Bingham pairando sobre ele. E sobre nós. "Hoje à noite, quando olharem para as estrelas", diz-nos Ryan, "haverá uma luz ainda mais brilhante que estará por cima delas." É a luz do seu voo rumo a parte nenhuma, como se uma tal proclamação fosse motivo para triunfos.
Não é. Ele sabe disso. Nós sabemos disso. E, em dissonância perfeita com as palavras falsamente triunfais de Ryan, temos a evidência das nuvens à nossa frente. Só então percebemos, talvez pela primeira vez, como eram certos os versos de W. H. Auden sobre a lua. Sim, a lua é bela. Tal como as nuvens. Mas a lua são desertos.

JOÃO PEREIRA COUTINHO

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