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25 março, 2011

DIÓGENES - EU ACUSO - Igor Pantuzza Wildmann - JornalExpress - www.jex.com.br

Recebi do querido Israel esse texto que mostra como o desrespeito pelo profissional da educação vem influenciando a maneira como as pessoas tratam seus professores, vale a pena ler, é muito bom:

DIÓGENES - EU ACUSO - Igor Pantuzza Wildmann - JornalExpress - www.jex.com.br

23 março, 2011

sobre o discurso do Saramago


Não é novo, mas é extremamente atual. Pesquisando para minha palestra, me deparei novamente com essa maravilha do gênio do autor que ousou falar o que todos sabiam, mas fingiam não ver...

Carta de José Saramago lida no encerramento do II Fórum Social Mundial

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um fato notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de 400 anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à proteção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exato tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso sinônimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objetivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e ação social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protetora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há 50 anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas 30 direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há 400 anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a retidão de princípios e clareza de objetivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo atual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em conseqüência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização econômica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingênuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efetivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que atualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de ação democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder econômico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos fatos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e atuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder econômico, com a objetiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os de certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder econômico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

22 março, 2011

sobre minha palestra no sesc...

na próxima quinta-feira irei falar sobre retórica no discurso político, é um tema que sempre me empolga e eu acho que a discussão será muito boa, dessa vez contarei com as ilustres presenças da minha mãe, da tia Rita e do tio Carlinhos! :)

Quem puder aparecer, apareça! Será um prazer!

13 março, 2011

sobre Cisne negro - fantástico!


Cisne Negro


Dirigido por Darren Aronofsky. Com: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder.

Parte 1: Odette e a Razão

Cisne Negro é o que o clássico Os Sapatinhos Vermelhos seria caso tivesse sido dirigido por David Cronenberg e David Lynch numa parceria inédita. Utilizando o balé O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, como centro narrativo exatamente como aquele excepcional longa de Michael Powell e Emeric Pressburger empregava a fábula concebida por Hans Christian Andersen, este filme de Darren Aronofsky representa não apenas uma bela homenagem ao balé como ainda funciona como um fascinante olhar sobre o processo criativo de uma artista obcecada por detalhes – além, claro, de representar uma experiência aterrorizante que deixaria orgulhosos os dois Davids citados no início deste texto.

Escrito por Mark Heyman, John J. McLaughlin e Andres Heinz a partir de argumento concebido por este último, Cisne Negro acompanha a bailarina Nina Sayers (Portman), que, depois de anos integrando o corpo de baile de uma grande companhia de dança, finalmente ganha a oportunidade de protagonizar um espetáculo quando a antiga estrela do grupo, a veterana Beth Macintyre (Ryder), é obrigada pelo diretor Thomas Leroy (Cassel) a se aposentar depois que o público começa a escassear. Profundamente dedicada à dança, Nina mora com a mãe, a ex-bailarina Erica (Hershey), e enxerga a chance de estrelar O Lago dos Cisnes com ambigüidade: por um lado, é a realização de um antigo sonho; por outro, logo começa a sentir a pressão por não conseguir incorporar toda a sensualidade exigida pelo papel de Odile, o “cisne negro” que se passa pela casta Odette (esta naturalmente vivida pela moça sem dificuldades). Torturada por estranhas visões, Nina ainda enfrenta a ameaça representada pela chegada de uma nova bailarina, Lily (Kunis), cuja espontaneidade logo atrai a atenção de Thomas.

Adotando uma lógica sombria já em sua cena inicial, o filme mergulha o espectador no inconsciente de Nina desde o primeiro segundo, quando acompanhamos seu pesadelo calcado em escuridão. Já desperta, a moça não perde um momento sequer antes de calçar as sapatilhas e testar o próprio corpo, deixando claro de imediato que todos os minutos de seu dia são dedicados incondicionalmente à sua Arte. Além disso, mesmo antes de ser eleita sucessora de Beth pelo exigente Thomas, a protagonista já surge insegura e intimidada como se estivesse sendo vítima de um escrutínio impiedoso por parte de suas colegas – e o design de som da produção é fabuloso ao nos remeter a esta paranóia contínua de Nina através de sussurros constantes que ora soam como risadas de escárnio, ora como críticas veladas às suas performances no palco.

Magra a ponto de inspirar preocupação, Natalie Portman encarna Nina como uma criatura extremamente frágil que parece sempre prestes a desabar: bulímica e determinada a atingir a “perfeição” (um conceito que Thomas enxerga de forma diferente, por sinal), a garota se comunica com uma voz delicada que muitas vezes parece nem deixar sua garganta completamente, falhando em se impor até mesmo ao ser provocada pelas demais bailarinas. Parte desta passividade enlouquecedora se deve, claro, à própria falta de paixão que se manifesta também em sua técnica excessiva, mas não só: infantilizada pela mãe, Nina expõe sua fragilidade emocional até mesmo em seu quarto de tons rosas e abarrotado de bonecos de pelúcia – e que, como se não bastasse, não lhe oferece a menor privacidade, já que Erica jamais permite que a filha tranque a porta.

Assim, o que resta à garota é mesmo o balé – algo que Portman ilustra com uma verossimilhança impressionante desde a primeira cena, quando Aronofsky acompanha os movimentos elegantes de seus pés apenas para subir a câmera e revelar que se trata da própria atriz e não de uma dublê. Além disso, ao manter seus quadros sempre próximos da moça enquanto esta gira pelo palco, o cineasta imprime uma formidável energia aos números, retratando a intensidade dos exaustivos ensaios com brilhantismo (e aqui mais uma vez o design sonoro merece destaque por ressaltar os esforços da protagonista através do ranger do assoalho sob seus pés e até mesmo ao remeter ao desgaste de suas articulações durante as coreografias). Neste sentido, aliás, Aronofsky é hábil também ao explicitar a necessidade da repetição infinita durante os ensaios até que tudo chegue ao ponto ideal – um tema caro a qualquer artista e que é representado também pelas várias pinturas que, praticamente idênticas, preenchem o quarto (e o tempo) da mãe da bailarina.

Erica, vale dizer, é interpretada por Barbara Hershey com uma complexidade intrigante: ainda que pareça realmente torcer pelo sucesso da filha, a ex-bailarina exibe uma sutil crueldade ao discutir os obstáculos enfrentados por esta – e o fato de manter o cabelo preso num coque típico de dançarina remete diretamente à carreira que teve que abandonar ao se tornar mãe e que ainda é motivo de um claro ressentimento na relação das duas mulheres (além disso, ao vestir-se sempre de preto, Erica se torna uma alusão constante ao lado adulto, independente e sedutor, que Nina tem dificuldade em alcançar). Enquanto isso, Vincente Cassel surge intenso e exibindo imensa autoridade como Thomas, sendo competente ao deixar óbvia a frustração que seu personagem sente diante da incapacidade de sua nova estrela de abraçar a própria sensualidade ao dançar como Odile, o cisne negro – e em certo momento, o ator consegue a proeza de permitir que o espectador perceba, sem que diga uma palavra, o impulso do diretor de substituir Nina por Lily.

Um impulso natural e compreensível, diga-se de passagem, já que a Lily composta por Mila Kunis é o oposto da Nina de Portman: enquanto a primeira claramente se diverte ao dançar (mesmo que pecando pela ocasional falta de técnica), a segunda parece sempre torturada em seus esforços absurdos de realizar cada movimento com precisão absoluta, contrapondo a visceralidade da novata à racionalidade artística da veterana – e discutirei outros aspectos desta dualidade na segunda parte do texto. Aliás, Natalie Portman merece todos os aplausos do mundo ao deixar evidente a dureza da performance de sua personagem ao dançar como Odile: ao mesmo tempo em que apreciamos a fluidez de seus passos, percebemos claramente a ausência do elemento de sedução cobrado por Thomas, o que é fundamental para que compreendamos o arco dramático percorrido pela protagonista.

Mas Cisne Negro não é uma vitória apenas para Portman; dono de um currículo tão impecável quanto o da Pixar (e, sim, incluo aí o subestimado Fonte da Vida), Darren Aronofsky exibe uma inteligência admirável ao forçar o público a compartilhar a paranóia de Nina não só através do já comentado design de som, que ilustra seu medo do fracasso e do ridículo, mas também seu crescente desequilíbrio psíquico e emocional, começando em pequenos instantes de incerteza (como a impressão de ver uma sósia no metrô ou o assustador movimento em uma pintura capturado pelo canto dos olhos) até atingir uma espécie de esquizofrenia descontrolada. Além disso, o cineasta confere autenticidade ao projeto ao enfocar em detalhes o cotidiano das bailarinas, como ao mostrá-las “quebrando” as sapatilhas e arranhando o solado para aumentar o atrito ou ao trazê-las sendo massageadas após um dia de desgastantes ensaios.

Fotografado com talento por Matthew Libatique, que utiliza as sombras com eficiência para estabelecer o clima sufocante da narrativa, Cisne Negro também é beneficiado pela excepcional trilha sonora de Clint Mansell, outro colaborador habitual de Aronofsky, que parece incorporar versões dissonantes dos temas concebidos por Tchaikovsky em sua própria trilha, remetendo constantemente ao balé que se torna uma obsessão dos personagens ao mesmo tempo em que o transforma em algo próprio e profundamente evocativo. E se o design sonoro de Brian Emrich e Craig Henighan merece uma terceira menção neste texto ao evocar também O Lago dos Cisnes através de ruídos como o bater de asas que acompanha sutilmente certos movimentos da protagonista, os efeitos visuais empregados pela produção também se apresentam fabulosos não só pela maneira orgânica com que são incorporados ao projeto, mas também pela qualidade técnica apresentada (e aqui me refiro especificamente aos acontecimentos – que não irei revelar, obviamente – vistos no terceiro ato da projeção).

Explorando ao máximo o sensacional roteiro de Heyman, McLaughlin e Heinz, Cisne Negro acaba criando intrigantes ecos temáticos com a própria obra de Tchaikovsky (vide Os Sapatinhos Vermelhos e Andersen) e também com os demais longas da carreira de seu cineasta, desde a metamorfose autodestrutiva vista em Pi até o salto característico de Mickey Rourke ao final de O Lutador – e, no processo, forja não apenas uma narrativa densa e repleta de simbolismos como ainda surge como um soberbo estudo do processo criativo de uma artista que, como tantos outros colegas de profissão, só consegue se enxergar completa e realizada ao entregar-se sem reservas ao ofício de construir algo belo e significativo.



Parte 2: Odile e o Espelho

(Atenção: aqui discutirei alguns aspectos temáticos e narrativos mais específicos de Cisne Negro e, assim, abordarei incidentes significativos da trama.)

Espelhos e reflexos sempre representaram uma obsessão para cineastas de todo o mundo – algo que surgiu como conseqüência da riqueza de simbolismos que inspiram, claro, mas também do próprio desenvolvimento psíquico pelo qual todos atravessamos até nos reconhecermos como indivíduos (algo que levou, por exemplo, o teórico Jean-Louis Baudry a estabelecer sua genial analogia entre o espectador cinematográfico e a fase do espelho descrita por Lacan). Assim, de Hitchcock a Buñuel ou de Fritz Lang a Tarkovsky, diretores das mais diversas épocas e donos de estilos variados empregaram o jogo de duplos como base temática de uma ou mais de suas obras – mas talvez poucas vezes este tenha sido utilizado de maneira tão intensa e orgânica como em Cisne Negro.

Constantemente levada a observar os próprios movimentos em vários espelhos a fim de refinar sua técnica, Nina Sayers já surge nos primeiros minutos de projeção sentada diante de múltiplos reflexos na sala de seu pequeno apartamento – e não demora muito até que, no metrô que a leva aos ensaios, seja novamente reproduzida na janela do vagão enquanto repara uma figura que, no carro seguinte, parece uma cópia de si mesma (mas envolvida em roupas pretas que contrastam com a brancura de seus próprios trajes). Com isso, Aronofsky logo estabelece a lógica visual que irá reger sua narrativa: o contraste entre branco e preto e, claro, a natureza partida da protagonista.

Pois Nina, como já discutido na primeira parte da crítica, é uma bailarina cuja personalidade frágil e infantilizada estabelece uma combinação perigosa com sua obsessão pela perfeição – especialmente ao ser obrigada a explorar um aspecto desconhecido de sua natureza: a sexualidade. Reprimida por acreditar que a disciplina absoluta lhe trará a precisão técnica que a transformará numa grande dançarina, a moça deixa de lado qualquer prazer que o balé possa oferecer, repetindo mecanicamente os passos concebidos por seu diretor sem jamais conseguir se libertar a ponto de enriquecê-los com a espontaneidade que o sujeito tanto deseja reconhecer em sua performance – e esta limitação auto-imposta que Thomas já afirmara ter observado ao longo dos anos se torna ainda mais prejudicial quando a garota é obrigada a assumir uma personagem que só virá à tona completamente caso construída com visceralidade: Odile, o cisne negro.

É quando surge em cena Lily, que Nina enxerga ora como rival, ora como parceira: espontânea e alegre, a garota logo se apresenta como o reflexo da protagonista, remetendo ao seu tipo físico, mas se comportando de maneira diametralmente oposta – o que se reflete não só nas cores de suas roupas, mas também no fato de Mila Kunis ser uma alternativa morena à alva Natalie Portman. Com isso, o conflito entre Odette, a princesa amaldiçoada de O Lago dos Cisnes, e a mal-intencionada Odile, se reflete também na dinâmica das duas bailarinas, encontrando respaldo nas asas negras que Lily traz tatuadas nas costas e na facilidade com que esta seduz todos ao seu redor. A partir daí, Nina passa a empregar a outra como a representação de seu possível fracasso, criando um alter-ego que, possuindo o rosto de Lily, surge como uma espécie de Tyler Durden de sapatilhas e collant preto.

Assim, aos poucos este lado de Nina parece se descolar de sua metade mais retraída – algo que Aronofsky inicialmente retrata com sutileza ao trazer os reflexos da bailarina se movendo com um levíssimo atraso com relação à moça até eventualmente se libertarem de vez, embora permaneçam por um bom tempo presos do outro lado do espelho (leia-se: em sua mente). À medida que a protagonista se esforça para encontrar Odile, porém, seu alter-ego “Lily Durden” (para diferenciá-la da verdadeira Lily) ganha força e passa a se manifestar fisicamente, como se Nina buscasse liberar a sexualidade há tanto sufocada – e é fascinante notar, por exemplo, como ao surgir deitada na cama, a estampa preta de seu travesseiro branco parece formar um esboço de asa saindo de suas costas, num belo indício da transformação que ela irá experimentar.

E, de fato, a metamorfose é absoluta: se inicialmente Nina dançava de maneira fria e reprimida como Odille, na fantástica dança final ela se entrega de vez à personagem – e Portman oferece uma performance inesquecível ao ilustrar a diferença para o espectador, já que até sua respiração pesada provocada pelo cansaço surge como um gemido quase sexual.

Mas alcançar este feito tem um preço: a esta altura, Nina e Lily “Durden” rivalizam pelo corpo e pela consciência da protagonista (reparem o memorável plano no qual Aronofsky parece fundir as duas brevemente num jogo de reflexos no apartamento da garota até que a segunda se separe e se afaste da primeira) – e, assim, a única maneira de Odile surgir no palco seria através da eliminação completa da recalcada Nina, que, para isso, mata aquela figura que se encontrava em seu caminho rumo à almejada perfeição: ela mesma.

Sua arma? Um afiado pedaço de vidro.

Extraído de um espelho.

Freud teria um orgasmo com este desfecho. E com razão.