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17 janeiro, 2010

sobre algumas poucas horas em Recife...


Fui a um congresso de Filosofia em Recife em meados de 2008. Na última noite, depois da palestra de uma professora na livraria Cultura, vários alunos e professores seguiram pelas ruas de Recife antigo, até parar no Burburinho (é esse o bar?)...eu seguia sozinha, próxima do grupo pois sabia que ali era uma região perigosa, quando um rapaz aparece ao meu lado e fala que também gostava muito de Kubrick, especialmente Laranja Mecânica...eu me assustei por um segundo, como ele poderia saber? até lembrar que minha camiseta me denunciava...

No dia seguinte, o último do congresso, ninguém foi para as palestras, e me juntei a eles num botequo perto do alojamento...ele estava lá, e por causa do cigarro tentei sentar longe, mas ele se mudou e ficou ao meu lado..algumas horas de conversa depois ele me pedia em casamento! Imagina, um menino, apesar da barba e do papo...Ri, desdenhei, ele se mostrou seriamente chateado, me pediu para ir ao próximo congresso que seria em sua terra natal, João Pessoa...

Nas fotos que tiramos seu braço escondido sugeria uma gentileza pouca vezes vista em bares com bêbados...respeito à minha alergia! Sempre me sinto como a chata quando tenho que reclamar por causa de cigarro, mas bastou eu esboçar uma palavra para ele entender tudo e manter o cigarro longe de mim...uma raridade...

Poucas vezes conheci alguém tão inteligente e encantador. Não era como a maioria dos homens que faz tudo para paquerar alguém, e depois de perceber que eu não seria sua próxima paquera a conversa tomou caminhos insólitos como nos filmes de Kubrick. Ele tinha uma conversa séria, profunda, mas não era o filósofo niilista que a maioria é...terminada a faculdade, estava se preparando para ir estudar em Salamanca...feliz, feliz...

Nos falamos por msn e orkut muitas vezes, ele além de tudo era um artista...http://www.flickr.com/photos/igorbezerra/page2/

Estava feliz na Salamanca, nos falamos algumas vezes e ele me dizendo que eu tinha que ir pra Europa...e, depois, não tive mais notícias, mas na correria me esqueci de procurá-lo...

Hoje a tarde assisti 2001, Uma Odisséia no Espaço...assim que terminei, vim para o computador e uma amiga que esteve em Recife com a gente me disse que ele havia morrido ( a coincidência do Kubrick me deixou assutada). Levei um choque! Tinha 22 anos...seu trabalho de Master em Salamanca já estava escrito, mas não foi defendido. Mesmo assim, a faculdade o publicou. Seu nome é Igor Bezerra, ou L'Etranger. Assim como um de seus escritores preferidos, foi-se muito cedo. Se Sócrates e Platão estiverem certos, agora ele deve estar discutindo com o mestre Camus, um cigarro numa mão, um copo de whisky na outra...


Impressões de Salamanca

Igor Bezerra

Camus e Benjamim falavam que a melhor maneira de se conhecer uma cidade é se perdendo nela. Isso desvela muito mais do que um romantismo em relação a cidade; antes de tudo marca uma diferença entre o estrangeiro, por assim dizer, e o turista. Este último, muito comodamente trabalha com o guia, seja uma pessoa, seja um papel. E, mais que uma orientação, o guia fornece um a priori, e este é o capital. Isto se dá ao se indicar para visitação os lugares propriamente turísticos, o que também mostra outra faceta do guiar-se predeterminado: a incapacidade de se conhecer a própria vida do lugar, cambiando estes para a contemplação dos costumes feitos para turistas, “macumbas para turista”.

Assim, não se experiencia a própria vivência do lugar. Além de se perder é necessário ir aos lugares que os habitantes da cidade costumeiramente vão, para que, destarte, saiba-se o que se passa cotidianamente naquele lugar, escamoteando as possibilidades de deslumbramento, o qual pode funcionar como escape da realidade que se apresenta.

A questão é perder-se, como acontece quando se tenta encontrar um bar ao qual já se tenha ido, mas ao qual não se sabe voltar, e, então, percorrem-se todas as direções que a Plaza Mayor permite, para que assim se chegue ao lugar desejado sem que se pergunte nada a ninguém. E parte-se da Plaza Mayor porque sempre se faz necessário que se estabeleça um ponto donde começar a considerar as demais coisas. Pode-se pensar que seja subjetivismo ou solipsismo, mas antes, seja questão de perspectiva. Fato é que não se pode reflexionar nada se não se tem um cais. Caso contrário fica-se no devir eterno, e, embora a realidade se dê mesmo dessa maneira, só se consegue trabalhá-la ao se fixar algo, mínimo que seja. Contudo, estabelecer a fixidez e apoditicidade de tudo acaba por negar por quase completamente o que se passe; é a tarefa do turista guiado, que trabalha segundo um a priori.
Ora, por que um a priori? Ver-se-á quão perto da epistemologia tudo isso está. O turista guiado tem um a priori porque o seu processo de conhecimento da realidade depende de algo que já está fora desta, embora tenha sido haurido daí. O que acontece é que tudo se passa como sem tivesse uma meta privilegiada e idealizada a qual se deve chegar enquanto fim-em-si. E pensar que a realidade tem uma meta para tingir é demasiado: eis o que Nietzsche é contra: eis o que a teoria de eterno retorno nega. O que se passa com o turista guiado é um falseamento da realidade, uma vez que este parte da idealização daquela.
Por mais que o movimento possa ser dialético, ao cabo pretende-se a realização de uma idealização, embora, para que se fixe esta dada idealização seja necessário um contato prematuro com a realidade. Não pode haver qualquer idéia que não seja um mínimo de extrato do real. A questão se coloca no grau de idealização que se faz da realidade e a seguinte graduação de balizamento que aquela influi sobre esta. Trata-se, como diria Quine, de “compromisso ontológico”.
E, desta maneira, fique-se com o mínimo. Portanto, em detrimento do turista guiado fique-se com o estrangeiro. Este tampouco conhece a cidade, assim como o turista; quer dizer, conhece menos ainda, uma vez que o turista parte do pressuposto de um algo dado, de um a priori. Para o estrangeiro a experiência se dá unicamente a partir da realidade radical, isto é, o seu primeiro dado é a própria realidade enquanto ato que vai se executando, assim como ele.
Ou seja, o real é a pedra de toque donde o estrangeiro irá construir o seu conhecimento acerca do incógnito. A situação é completamente oposta: de um lado se tem a construção do real a partir da idéia; do outro, tem-se a formulação de idéias a partir do real. Jogo de palavras a parte, a questão vai mais além, ou, antes, mantém-se mais aquém.
Não se trata necessariamente de formulação de idéias a partir do real o que faz o estrangeiro. Pode-se e deve-se permanecer mais aquém. O que se faz necessário, e não poderia ser de outra forma, é a reflexão acerca do que se passa para que se fixe um dado preciso a partir do qual se mantenha a vida. Basta o simples forjar de um conceito, o que é, em sua raiz, possibilidade de manutenção da vida, com o que Nietzsche concorda.
Mais do mesmo é a aceitação do mínimo de compromisso ontológico para que se possa lidar com a vida de modo satisfatório, pois, mais cedo ou mais tarde se tratará de fixar algo da realidade, o pouco que seja não necessariamente um conceito bem acabado, mas, fim das contas, dado o logos, é do que não se pode escapar. Primórdios de tudo, pode se pensar que o único que está é a realidade efetiva, a realidade em ato. Apenas depois da reflexão da experiência é que se torna possível a criação de um conceito, uma idéia, mediante a linguagem. Bom, esse tempo imemoriável já se foi e não se pode recuar. Já se nasce com conceitos formados esperando pra ser aprendidos. E faz-se isso sem que se sinta até o espanto.
Uma vez dado esse, é questão de honestidade ôntico-epistemológica que se estabeleça a realidade como paridora de tudo que advém, e não o contrário, isto é pensar a idéia como grávida. Trata-se do instante pregnante, como fala Aumont acerca da pintura. Mais: acontece que todo instante é pregnante, a depender da perspectiva. A noção de um instante pregnante só se deve ao fato da condição de possibilidade da reflexão, que é a fixidez do fluxo. E, se a necessidade de fixidez é uma necessidade moral para a manutenção da vida, ater-se à realidade prioritariamente e o máximo possível é questão de honestidade ontológica.Dado todo esse qüiproquó epistemológico, apreende-se que o posicionamento ético-ontológico que se mantém nos limites mais baixos, portanto, mais próximos da realidade efetiva, da realidade enquanto ato, é o deixar-se perder-se do estrangeiro.

Segunda feira, 8 de dezembro de 2008

Igor Bezerra natural da Paraíba era artista plástico e ensaísta. Formou-se em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba. Morreu no dia 16 de maio de 2009, aos 22 anos em Salamanca, Espanha onde estava estudando.


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