Impressões de Salamanca
Igor Bezerra
Camus e Benjamim falavam que a melhor maneira de se conhecer uma cidade é se perdendo nela. Isso desvela muito mais do que um romantismo em relação a cidade; antes de tudo marca uma diferença entre o estrangeiro, por assim dizer, e o turista. Este último, muito comodamente trabalha com o guia, seja uma pessoa, seja um papel. E, mais que uma orientação, o guia fornece um a priori, e este é o capital. Isto se dá ao se indicar para visitação os lugares propriamente turísticos, o que também mostra outra faceta do guiar-se predeterminado: a incapacidade de se conhecer a própria vida do lugar, cambiando estes para a contemplação dos costumes feitos para turistas, “macumbas para turista”.
Assim, não se experiencia a própria vivência do lugar. Além de se perder é necessário ir aos lugares que os habitantes da cidade costumeiramente vão, para que, destarte, saiba-se o que se passa cotidianamente naquele lugar, escamoteando as possibilidades de deslumbramento, o qual pode funcionar como escape da realidade que se apresenta.
A questão é perder-se, como acontece quando se tenta encontrar um bar ao qual já se tenha ido, mas ao qual não se sabe voltar, e, então, percorrem-se todas as direções que a Plaza Mayor permite, para que assim se chegue ao lugar desejado sem que se pergunte nada a ninguém. E parte-se da Plaza Mayor porque sempre se faz necessário que se estabeleça um ponto donde começar a considerar as demais coisas. Pode-se pensar que seja subjetivismo ou solipsismo, mas antes, seja questão de perspectiva. Fato é que não se pode reflexionar nada se não se tem um cais. Caso contrário fica-se no devir eterno, e, embora a realidade se dê mesmo dessa maneira, só se consegue trabalhá-la ao se fixar algo, mínimo que seja. Contudo, estabelecer a fixidez e apoditicidade de tudo acaba por negar por quase completamente o que se passe; é a tarefa do turista guiado, que trabalha segundo um a priori.
Ora, por que um a priori? Ver-se-á quão perto da epistemologia tudo isso está. O turista guiado tem um a priori porque o seu processo de conhecimento da realidade depende de algo que já está fora desta, embora tenha sido haurido daí. O que acontece é que tudo se passa como sem tivesse uma meta privilegiada e idealizada a qual se deve chegar enquanto fim-em-si. E pensar que a realidade tem uma meta para tingir é demasiado: eis o que Nietzsche é contra: eis o que a teoria de eterno retorno nega. O que se passa com o turista guiado é um falseamento da realidade, uma vez que este parte da idealização daquela.
Por mais que o movimento possa ser dialético, ao cabo pretende-se a realização de uma idealização, embora, para que se fixe esta dada idealização seja necessário um contato prematuro com a realidade. Não pode haver qualquer idéia que não seja um mínimo de extrato do real. A questão se coloca no grau de idealização que se faz da realidade e a seguinte graduação de balizamento que aquela influi sobre esta. Trata-se, como diria Quine, de “compromisso ontológico”.
E, desta maneira, fique-se com o mínimo. Portanto, em detrimento do turista guiado fique-se com o estrangeiro. Este tampouco conhece a cidade, assim como o turista; quer dizer, conhece menos ainda, uma vez que o turista parte do pressuposto de um algo dado, de um a priori. Para o estrangeiro a experiência se dá unicamente a partir da realidade radical, isto é, o seu primeiro dado é a própria realidade enquanto ato que vai se executando, assim como ele.
Ou seja, o real é a pedra de toque donde o estrangeiro irá construir o seu conhecimento acerca do incógnito. A situação é completamente oposta: de um lado se tem a construção do real a partir da idéia; do outro, tem-se a formulação de idéias a partir do real. Jogo de palavras a parte, a questão vai mais além, ou, antes, mantém-se mais aquém.
Não se trata necessariamente de formulação de idéias a partir do real o que faz o estrangeiro. Pode-se e deve-se permanecer mais aquém. O que se faz necessário, e não poderia ser de outra forma, é a reflexão acerca do que se passa para que se fixe um dado preciso a partir do qual se mantenha a vida. Basta o simples forjar de um conceito, o que é, em sua raiz, possibilidade de manutenção da vida, com o que Nietzsche concorda.
Mais do mesmo é a aceitação do mínimo de compromisso ontológico para que se possa lidar com a vida de modo satisfatório, pois, mais cedo ou mais tarde se tratará de fixar algo da realidade, o pouco que seja não necessariamente um conceito bem acabado, mas, fim das contas, dado o logos, é do que não se pode escapar. Primórdios de tudo, pode se pensar que o único que está é a realidade efetiva, a realidade em ato. Apenas depois da reflexão da experiência é que se torna possível a criação de um conceito, uma idéia, mediante a linguagem. Bom, esse tempo imemoriável já se foi e não se pode recuar. Já se nasce com conceitos formados esperando pra ser aprendidos. E faz-se isso sem que se sinta até o espanto.
Uma vez dado esse, é questão de honestidade ôntico-epistemológica que se estabeleça a realidade como paridora de tudo que advém, e não o contrário, isto é pensar a idéia como grávida. Trata-se do instante pregnante, como fala Aumont acerca da pintura. Mais: acontece que todo instante é pregnante, a depender da perspectiva. A noção de um instante pregnante só se deve ao fato da condição de possibilidade da reflexão, que é a fixidez do fluxo. E, se a necessidade de fixidez é uma necessidade moral para a manutenção da vida, ater-se à realidade prioritariamente e o máximo possível é questão de honestidade ontológica.Dado todo esse qüiproquó epistemológico, apreende-se que o posicionamento ético-ontológico que se mantém nos limites mais baixos, portanto, mais próximos da realidade efetiva, da realidade enquanto ato, é o deixar-se perder-se do estrangeiro.
Segunda feira, 8 de dezembro de 2008
Igor Bezerra natural da Paraíba era artista plástico e ensaísta. Formou-se em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba. Morreu no dia 16 de maio de 2009, aos 22 anos em Salamanca, Espanha onde estava estudando.
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