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23 outubro, 2008


Sobre “Ensaio sobre a Cegueira – o Filme”

Erika Bataglia da Costa*



...os olhos do homem parecem sãos, a íris apresenta-se
nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como
porcelana. As pálpebras arregaladas, a pele crispada da
cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso,
qualquer um pode verificar, é que se descompôs pela
angústia. Num movimento rápido, o que estava à vista
desapareceu atrás dos punhos fechados do homem, como se
ele ainda quisesse reter no interior do cérebro a última
imagem recolhida, uma luz vermelha, redonda, num semáforo.
Estou cego, estou cego...


O romance de José Saramago no qual se baseia o livro é provavelmente um dos mais estimulantes e impactantes trabalhos do autor. Na vasta obra de Saramago várias vezes podemos observar a angústia daqueles que já não sabem quem são, tomados que estão pelas intermitências da morte ou esperando a terra voltar a tremer numa jangada de pedra. Em Todos os Nomes, a Conservatória Geral de Registro Civil comporta homens que já não tem mais a verdadeira noção de si mesmos, tão absortos que estão nos trabalhos burocráticos e repetitivos de anos. Sem perceber-se como alguém que não tem mais consciência de si mesmo, o Sr, José começa a burlar as regras tão rigidamente seguidas inclusive por ele mesmo em busca de um desconhecido. Sua busca por outro mostra quem ele realmente é. Saramago recorre a personagens como esta para mostrar que muitas vezes o caos interior é maior que o exterior, e mais difícil de ser contido. Em "Ensaio sobre a Cegueira" o autor nos coloca diante de várias personagens sem nome, justamente aquilo que normalmente diferencia uma pessoa de outra, e nos mostra como, diante de circunstâncias tão adversas, nos tornamos de fato aquilo que somos essencialmente.

Não é tarefa fácil imaginar uma adaptação cinematográfica para essa obra-prima de Saramago, transformar a prosa do escritor português em filme poderia resultar na diminuição do impacto de várias cenas e se tornar apenas mais um filme onde humanos se tornam zumbis, imagem que a maioria tem ao ler as cenas onde os cegos estão com as bocas abertas para cima no meio da rua, para beber a água da chuva, ou cambaleando famintos dentro de um supermercado em busca de alimentos.

Obviamente a adaptação não tem o mesmo impacto que sua fonte. O cineasta disse em entrevista ter tentado manter cenas mais chocantes na edição, mas foi convencido (leia-se, impelido pelos patrocinadores) a tornar o filme mais palatável para evitar chocar a platéia. Não há como não se chocar com a obra de Saramago, e este é talvez o maior problema com o filme. A “cegueira branca” influenciou a fotografia do filme, quase todo em tons claros, em alguns casos até o extremo. A luz é tão forte que acaba impedindo a visão, em algumas cenas, de quem vê o filme, trazendo uma imagem de assepsia que se contrapõe à sujeira descrita no livro e que se vê de forma menos intensa no filme. Não que se faça questão de ver toda a sujeira dos excrementos dos cegos no local da quarentena, mas no livro a imagem passada pelo autor choca e tem um motivo. Saramago cria parábolas e paradoxos. Por um lado, pessoas “sãs” que passam pelas outras como se estas fossem invisíveis, mas que depois precisam destas mesmas pessoas para se salvar, outras que procuram ajudar o próximo como numa situação de altruísmo quando na verdade é apenas pela percepção de que sem o outro não é possível ser si mesmo. A humanidade dá passagem à selvageria em busca de sobrevivência. Em desespero extremo, mulheres se submetem aos homens para conseguir comida, e voltam como guerreiras que não deixaram de ser quem elas de fato são por causa da coerção alheia. Da vergonha e desespero à força para impedir que novas coerções como estas aconteçam, são as mulheres que colocam à prova a força do grupo que se dizia líder. A mulher do médico, única a enxergar, tenta ajudar a todos o tempo todo, deixando de lado a si mesma. Observando o comportamento deles e o modo como se relacionam uns com os outros, ela chega a concluir que as pessoas tornam-se realmente quem elas são a partir do momento em que não podem mais julgar a partir do que vêem. Cansada da situação, percebe que é a única que pode resolver o problema. Ao sair do local da quarentena, vê que a cidade toda foi praticamente destruída por causa da epidemia, e aproveitando-se de sua rara condição, guia o grupo até sua casa.
O filme não fala sobre como desvendar a causa da doença ou sua cura, mas mostrar como uma sociedade desmorona ao perder tudo aquilo que considera como civilizado. Mas é diante do colapso que o grupo tenta reencontrar a sua humanidade. O brilho branco da cegueira ilumina as percepções das personagens e a história torna-se não só um registro da sobrevivência física das multidões cegas, mas também dos seus mundos emocionais e da dignidade que tentam manter. Como os olhos do primeiro cego, que pareciam sãos, mas já não eram, Saramago talvez nos quisesse mostrar quão doentes estão todos os outros “olhos” num mundo crivado pelo individualismo, onde o pensar em si mesmo sobrepõe-se, onde o egoísmo é maior que o entendimento do outro como necessário à formação do seu ser. Mais do que olhar, importa reparar no outro. Só dessa forma o homem se humaniza novamente.
Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga 0 que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.


*Mestranda do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Ceará – UFC. Bolsista Capes-Reuni.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bravo!
Israel