Normalmente não coloco aqui textos inteiros, prefiro comentá-los, mas acredito que a jornalista da Carta Capital expressou de maneira tão ímpar o tema que prefiro deixa-lo completo...
A estética é uma ética
02/05/2008 12:17:18
Rosane Pavam
Michelle Perrot é uma intelectual francesa que se especializou na história das mulheres, uma tendência historiográfica hoje tida por incontornável. Mede-se um governo pela forma de tratá-las e um intelectual, pelo papel com a qual as distingue. Claro que estamos falando da França. Mas dona Perrot, com um programa na Rádio France Culture, atingiu alguma popularidade, há cerca de três anos, ao contar as razões pelas quais a mulher merece uma história especial.
A seu ver, esta escrita é necessária porque a narrativa feminina foi omitida dos anais da história. O que a mulher dizia, especialmente às escondidas (e se, por sorte alfabetizada, nos diários), não se contava, jogava-se no lixo. Hoje os historiadores estão à cata de seus bilhetes, receitas e álbuns fotográficos em busca de alcançá-la. Ela se viu omitida por força de um entendimento tácito entre homens, mulheres mesmo, políticos e intelectuais. Michelle Perrot nos faz corar quando mostra o que disseram pensadores sobre ela, em “Minha História das Mulheres” (editora Contexto).
Escolhi duas citações. Uma de Paulo, na primeira epístola a Timóteo: “A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito que a mulher ensine nem use de autoridade sobre o marido, mas que permaneça em silêncio.” E esta outra, de um Kierkegaard torturado pela sexualidade feminina: “Eu gostaria de dizer a um desses tolos que pregam a emancipação: olhe, ei-la em sua imperfeição, mais fraca que o homem; se tiver coragem, corte seus cachos abundantes, rompa as pesadas correntes e deixe-a correr como uma louca, como uma criminosa, aterrorizando a todos.”
A mulher só teve um papel de destaque na Revolução Francesa, sustenta Michelle Perrot, durante as manifestações enérgicas pelo preço justo do pão. Do final do século XVII até a revolução de 1789, ela foi a “rainha das ruas”, “a mais ardente” nos confrontos com a polícia. Mas, decapitada Maria Antonieta, a mulher regressou à cozinha. Durante o Antigo Regime, portanto, ela foi muito mais importante do que no século XIX, quando a regularização do abastecimento e a taxação do preço do pão eliminaram progressivamente este tipo de rebelião.
Vão contestar, vão chiar, vão dizer que as mulheres são iguais aos homens desde há muito, depois de todos esses fatos findos. Mas é que ainda não são. “Negro do mundo”, disse John Lennon sobre ela. Lembro-me de ter obtido da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, como resposta a uma pergunta que lhe fiz, a seguinte expressão definidora da mulher: “Bicho da sombra.” Isto tem quase dez anos. E a sombra continua. E a mulher, ao agir, continua a fazê-lo em silêncio até mesmo pelos Jardins, bairro paulistano onde dona Lygia mora.
Observo figuras enquanto caminho pelas revistas femininas do consultório. São publicações repaginadas por um senso de valorização feminina, revistas cultas, por assim dizer, ou conscientes, desejando informar seu público, enquanto o diverte com pecadilhos, ou mesmo grande pecados, de consumo da imagem de mulher. Todas as publicações que a consideram personagem nuclear tratam de torná-la essencial pela agressividade do rótulo de “rainha das ruas” (e já vejo o tempo em que elas retornarão, resignadas, ao salão de beleza). Mas, ao fazer esta abordagem, tais revistas acabam por entregá-la de bandeja a novos vexames.
A candidata a primeira-dama venceu o câncer, mora sozinha e pede que as mulheres não se pautem pela beleza, enquanto posa para a foto com lindos colares, barriga sarada e um olhar de quem se assustou ou se perdeu. A atriz que enfrentou o presidente ao pedir o fim da transposição de um rio, consciente e intransigente, olha ao interlocutor de ar maroto, segurando uma maçã, na primeira página de uma revista em couchê.
A mensagem transmitida por tais mulheres de papel agressivo, grandioso porque masculino, mas em primeiro lugar insinuante por conta da necessidade sexual da superbeleza, é insuportavelmente dúbia. Elas não dão um naco por serem bonitas, claro, mas estão prontas a destacar este reconhecimento físico, fazendo valer seu epíteto de mercado. E então, o que isto significa? Que se vendem, de bom grado. E o que temos a ver com isso? São lindas, por enquanto.
Temos de olhá-las. Temos de discutir se a cor dos seus cabelos está adequada. O corte muda tudo. Desculpe a expressão, mas eu me pego nos cabelos. Eles parecem ser o único assunto a unir aquela cabeça em rodopio da chaminé ambulante Carrie-in-the-city, as mulheres-saias e os antes tão divertidos, mas agora luivuitonizados, dois neurônios. Oprah Winfrey diz que mudar os cabelos mexe muito no emocional. Também lembra que as tinturas libertaram todas as mulheres depois dos 40 anos.
Os cabelos são a essência feminina, para Kierkegaard, Winfrey e Betty Lago, quiçá. Michelle Perrot dedica boa parte do livro aos cachos. “A representação dos cabelos das mulheres é um tema maior de sua figuração, principalmente quando se quer sugerir a proximidade da natureza, da animalidade, do sexo e do pecado. Eva e Maria Madalena são dotadas de espessas cabeleiras que fazem a beleza da estatuária medieval e da pintura do Renascimento alemão.” O cabelo é um presente de Deus, dado à mulher como véu, segundo o velho amigo apóstolo Paulo. O véu a encobri-la, aqui ou entre os afegãos.
“A mulher é, antes de tudo, uma imagem”, diz Perrot. “Um rosto, um corpo, vestido ou nu. A mulher é feita de aparências. E isso se acentua mais porque, na cultura judaico-cristã, ela é constrangida ao silêncio em público. Ela deve ora se ocultar, ora se mostrar. Códigos bastante precisos regem suas aparições, assim como de tal ou qual parte de seu corpo. Os cabelos, por exemplo, condensam sua sedução.”
Ninguém tem o direito de ser feia, diz Perrot. “A estética é uma ética”.
Fico pensando, como Virginia Woolf, que são as roupas que nos usam, e não o contrário. Mas que mundo é este? Não dou a mínima para dicas que se avolumam na farmácia, contraditórias, pelosas, sobre a elasticidade de meus fios. Minha juventude não esteve nos cabelos. Eles passaram como os de Leopoldina, enfeixados em um laço no Museu do Ipiranga. Que puderam ser os cabelos, meu deus, diante de uma descoberta poética? Lembro-me da foto de Lou Salomé brincando de chicotear os eternos apaixonados filósofos Paul Ree e Friedrich Nietzsche. Poeta, psicanalista, ela disse aquilo em que acredito: “Primeiro vivemos a juventude, depois a juventude vive em nós.”
Sou mais jovem quando leio do que quando tinturo.
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