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30 dezembro, 2008

Vestido de noiva e Toda nudez será castigada – Possíveis relações na noção de si mesmo na obra de Nelson Rodrigues

Vestido de noiva e Toda nudez será castigada – Possíveis relações na noção de si mesmo na obra de Nelson Rodrigues

Erika Bataglia da Costa

Mestranda em Filosofia da UFC

Orientanda da Profª Maria Aparecida Montenegro

A obra de Nelson Rodrigues traduz de maneira muitas vezes dura e cruel a classe média brasileira, mostrando sua hipocrisia e sua tentativa desesperada de se encaixar nos padrões e normas de conduta ditadas muitas vezes por aqueles mesmos que sucumbem aos apelos da contemporaneidade. Uma das características mais marcantes de sua obra é a perversidade nas relações sociais, percebidas nas atitudes das pessoas revelando a hipocrisia, a exacerbação e deslealdade das competições, a tentativa de esconder os desejos proibidos, o conformismo exagerado ou o inconformismo agressivo mostrando um universo extremamente pessimista.

Neste trabalho pretende-se fazer um paralelo entre aspectos da obra em relação à noção de si mesmo. Para tanto, faz-se necessária a elaboração de pequeno resumo para contextualização da discussão.

Na obra Vestido de Noiva a personagem principal é Alaíde, mulher da classe média casada com rico industrial e que pensa que será assassinada. A trama se passa em três planos diferentes: a realidade, a memória e a alucinação. Neste último, Alaíde encontra Madame Clessi, prostituta do inicio do século de quem Alaíde leu o diário e por quem passa a nutrir profunda admiração. No plano da realidade Alaíde rouba o namorado da irmã e se casa com ele e acredita que será assassinada, sendo atropelada por um carro e passando por uma longa cirurgia. Durante a cirurgia os planos da memória e da alucinação se entrecruzam constantemente, com várias ações acontecendo de forma não linear.

Em toda nudez, o rico empresário e religioso Herculano perde a esposa e seu irmão, diante da depressão de Herculano e com medo de perder sua fonte de recursos financeiros, apresenta a ele a prostituta Geni, por quem ele se apaixona. O filho de Herculano, Serginho, desaprova o casamento de ambos até que percebe que pode aproveitar de tal situação para trair o pai, a quem culpa pela sua permanência na prisão e o trauma de ter sido molestado por um ladrão boliviano. Após casar-se, Geni passa a ser amante do enteado, e comete suicídio ao descobrir que este a trocou pelo bandido boliviano. Antes, porem, de se matar, deixa registrado o seu relato para o marido Herculano, talvez numa tentativa de explicar sua traição ou de fazer com que ele também sofra com a descoberta.

Em ambas as obras várias imagens e símbolos mostram essa amarga concepção da existência, sem nenhuma surpresa, com pouca sutileza, em que pese a manifesta intenção de ironizar símbolos sagrados à cultura judaico-cristã. Dessa maneira, em Vestido de Noiva o que deveria simbolizar a virgindade, a ingenuidade de sentimentos, a paixão pelo noivo com o qual ocorrerá a união sob a benção de Deus e dos homens, nos mostra um cenário completamente dessacralizado, sem pureza ou castidade, e a hora em que a noiva deve ser vestida é o momento máximo da representação da discórdia, da competição entre Alaíde e sua irmã. “Eu sou muito mais mulher que você, lúcia, sempre fui”. Com essa frase Alaíde tenta justificar para a irmã a sua conduta ao roubar seus namorados, reforçando a noção de si diante da outra.

Em Toda Nudez, o luto de Herculano é quebrado pela paixão avassaladora por Geni, prostituta que afinal sonha em ser uma “mulher de bem”. Os símbolos sagrados na casa em que Geni passa a residir ao casar com Herculano são retirados dos lençóis empoeirados e colocados a descoberto, mas no final das contas continuam ignorados. Alaíde, por sua vez, é mulher da classe média que sonha em ser como a prostituta Clessi, por quem nutre profunda admiração.

Na obra Toda nudez será castigada, Geni, mesmo casada, mantem uma relação com o jovem enteado, reforçando por diversas vezes aspectos de sua juventude. Em Vestido de Noiva, madame Clessi também mantem uma relação com um jovem de apenas 17 anos e vê nele traços de seu filho, levando o espectador a perceber certo ar de incestuosa eroticidade. Tanto Geni quanto Madame Clessi, cada qual à sua maneira, morrem por causa desses jovens.

Outra característica que perpassa as duas obras diz respeito ao machismo, transparente ou reprimido, das personagens, inclusive mulheres. Herculano e Pedro, apesar de profundamente diferentes, tem em comum esse aspecto, e baseiam suas ações sempre no fato de serem – ou terem que ser – superiores às mulheres, que na verdade os manipulam e confundem, na maioria das vezes. Sua noção de si fica perturbada quando percebem não ter em suas mãos as rédeas do destino.

Em ambas as obras a família tem papel secundário mas importante, pois é exatamente a partir delas que se impõem as obrigações morais das personagens. Em Vestido de Noiva, a família ignora o fato de Alaíde ter roubado o namorado da irmã e prepara o casamento tentando ignorar a realidade da traição tão pungente. Após a morte de Alaíde, Lúcia se casa com Pedro em ritual tal qual o anterior e esse fato parece não transtornar nenhum membro da família. Em toda Nudez será castigada, durante o casamento de Geni com Herculano, uma de suas irmãs diz que ela nem parece prostituta, num desejo profundo de apagar o passado da agora membro da família e evitar as prováveis críticas da sociedade burguesa em que vivem.

O desfecho das duas obras é trágico, mas, diante da anuência dos membros envolvidos, parece banal. A morte das protagonistas parece por em curso um continuísmo sem fim na vida daquelas famílias, oprimidas pelo desejo de manter-se fiel às tradições, mesmo que para isso precisem enterrar com seus mortos todas as perversões ocorridas em suas salas e quartos.

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